Portugal é a terra onde acontece tudo o que não se esperava que acontecesse. O que esperar de um Estado Nação já com quase mil anos de história que, para se tornar independente, vê um filho declarar guerra à mãe? Ou que o seu dia nacional é o dia de um poeta? Ou que possui em Belém a torre militar mais gay da Europa?
Por aqui, tudo é impossível e possível. Falo de um povo que em 1500, com apenas um milhão de habitantes e sem exército, chega a todo o mundo, levando consigo o pior e o melhor da Europa.
Fomos um povo que baptizou de Coração e Barbados duas ilhas por pura evocação poética. Que introduziu o coco e a manga no Brasil, a malagueta na Índia que deu origem ao caril, hoje o seu prato nacional, o hábito do chá na corte inglesa, a tempura e mais de 60 palavras utilizadas no quotidiano do Japão, o alfabeto latino no Vietname, a palavra mandarin em Espanha (aquele que manda) ou o ukelele no Havai, criando novas paisagens culturais que se acredita sempre terem estado lá. Mas é bom relembrar o improvável de tudo isto: como é que, numa nesga de terra, com uma horda de analfabetos e um gigante como vizinho, surge nela um Camões, um Gil Vicente ou um Fernão Mendes Pinto - aquele que sim, deveria ser o verdadeiro ícone da nação, o retrato fiel de morto de fome, cuja Peregrinação, muito superior à escrita de Marco Polo, é apenas o reflexo de um desesperado à procura de coisa melhor.
E aqui entramos nos anais dos desesperados. E se existe um denominador comum em quase toda a produção artística em Portugal é o desespero: Fernão de Magalhães, que rejeitado pela sua corte, vende a Espanha a ideia da circum-navegação, sendo ameaçado de morte e desterro por isso; Camões, que quase morre para salvar a sua obra como contou Saramago; Fernando Pessoa apenas descoberto e enaltecido quase 20 anos depois da sua morte e Agostinho da Silva ou Jorge de Sena, cuja única forma de sobreviverem foi emigrar para o Brasil.
Então, quando me pedem para escrever sobre a cultura em Portugal é sempre disto que me recordo: a linhagem de maltrapilhos e mal-amados que somos. Ainda hoje, se quiserem encontrar um ícone actual de cultura portuguesa é possível que o vejam atrás do balcão de um bar ou a trabalhar num hostel para suportar a sua criação artista e, no final, ainda ser acusado de viver às custas do estado.
Como um dos nossos maiores artistas plásticos e designer gráfico, Fernando Lemos, diria: “em Portugal nunca se nasce nem se existe antes dos 100 anos. Aqui só se respeita e comemora o centenário. Até lá, não existimos”. E talvez por isso, Almada Negreiros tenha escrito que Portugal é “a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga para falar de Camões». Mas, no país dos improváveis, é possível um homem de origem humilde e com pouco mais que o ensino primário, que começou a escrever romances aos 60 anos, ganhar o Nobel aos 76, como o nosso grande Saramago. No país dos improváveis, um miúdo de 21 anos como o Vhils, que cresce num qualquer bairro operário do outro lado do rio, sendo apenas reconhecido em Portugal após ganhar fama à escala planetária. Porque, por aqui, em Portugal, apenas existimos quando nos validam lá fora. Até lá, somos invisíveis. E o que dizer de Carlos Paredes, o funcionário administrativo de um Hospital que falava através da guitarra? Ou de Amália, que nasce na miséria, entre putas e bêbados, e se torna diva da nação? Ou de Carmen Miranda que só depois de emigrar se torna estrela e símbolo do Brasil além-fronteiras?
Portugal tem dado cartas a nível internacional graças a uma panóplia de artistas que, com uma visão diferente e inovadora, criaram obras incontornáveis e revolucionárias para a cultura do país e dos países onde hoje habitam, nos mais variados quadrantes. Paula Rego, provavelmente, uma das nossas maiores artistas vivas, tem uma obra vasta, universalmente elogiada, sendo alvo de diversas retrospetivas e exposições. A sua importância é tal que foi reconhecida pelo ex-presidente da república Jorge Sampaio, que convidou a artista a pintar o provocador “Ciclo da Vida da Virgem Maria e da Paixão de Cristo” para a capela presidencial do Palácio de Belém. A música portuguesa está a viver os seus anos mais prolíferos e versáteis, contando com criadores que, em diferentes estilos e géneros, têm trazido a atenção dos portugueses de volta para a sua língua, e de admiradores por todo o mundo, que esgotam espectáculos de músicos como Salvador Sobral, Noiserv ou dos Buraka Som Sistema (projecto singular que mostra como a fusão de culturas de países de língua portuguesa pode criar algo completamente novo). Na literatura, Valter Hugo Mãe destaca-se como um dos maiores escritores da sua geração, tendo já suscitado a aclamação do público e da crítica com romances impressionantes e inovadores como “O Apocalipse dos Trabalhadores” ou “A Máquina de Fazer Espanhóis”. No cinema, Miguel Gomes com a sua obra prima “Tabu” é o maior da sua geração, no humor, Bruno Aleixo, na ciência, António Damásio e as suas investigações sobre o funcionamento do cérebro que são estudadas e seguidas a nível mundial, e na física, João Magueijo propôs uma nova e polémica teoria sobre a velocidade da luz, no livro “Mais Rápido que a Luz”, que tem sido discutida em toda a comunidade científica. E por fim, mas não menos importante: Joana Vasconcelos, provavelmente uma das artistas portuguesas mais “exportadas”, cuja obra apesar de não ser consensual, foi exposta no Palácio de Versalhes e no Guggenheim apenas pelo seu próprio mérito. Para um país tão pequeno e aparentemente tão insignificante, esta resumida amostra de exemplos deixa claro como os portugueses são superlativamente maiores que a sua dimensão geográfica.
Quando eu era criança, gostava de imaginar que Portugal era o país que tinha mais mentes brilhantes por metro quadrado. E ainda hoje quero acreditar nisso, ao ver um golo do Ronaldo ou um discurso de António Guterres ao presidir à ONU.
Mas o problema é: em Portugal tudo é acaso, tudo é acidente, não existe nem nunca existiu qualquer política de Estado para a cultura. Tudo é uma soma de improváveis. Somos feitos de sucessos exclusivamente individuais, que não significam nada, pois a cada sucesso, por aqui, recomeçamos sempre do zero.
E talvez seja isso que nos torne improváveis: a nossa resiliência. Somos um povo quase a completar um milénio de existência, uma espécie de musgo que teima em persistir. O povo-barata que sobrevive a tudo, inclusive à indiferença e maus-tratos dos seus.
Então, quando retratam Portugal como o país da melancolia, eu lamento discordar. Acho que somos apenas indiferentes às agruras da história: líderes que abandonam várias vezes o seu povo, terramotos que destruíram várias vezes o país, uma guerra colonial ridícula e fora de tempo que durou uns desesperantes 13 anos. Uma indiferença que nos torna os reis do sarcasmo e da reclamação.
A verdade é que os 50 anos de ditadura nos tornaram apáticos. Porque é mais fácil ser vítima do que agir. É mais fácil sermos coitados e culpar os outros. Somos “o povo menino, o povo criança”, de Cesariny, que acredita estar nos astros a sua salvação. A nossa eterna crença no Espírito Santo e na abstração. E então, basta ver imagens dos anos 40 para percebermos o povo rural que éramos e que ainda somos. Enquanto em Nova Iorque os zepelins sobrevoavam arranha-céus, em Portugal as mulheres do povo andavam descalças.
Mas chega finalmente a revolução que destituiu um regime a cair de podre, a revolução mais bonita de que há memória. Com um exército libertador a respeitar sinais de trânsito antes de intentar a revolução, e que colocou cravos vermelhos nas bocas das espingardas. A revolução dos cravos. Bonito, não?
Mas de pouco ou nada serviu aos invisíveis, porque o 25 de Abril nunca chegou à cultura.
Infelizmente, a elite portuguesa sempre foi medíocre e ainda o é. Uma elite que acha que a cultura se resume a saber falar francês, tocar piano e talvez ter umas antiguidades lá por casa. Que nunca se preocupou com o bem-comum, mas sim com o poder pelo status do poder e não para o exercer em prol de um qualquer desígnio. A política cultural do estado português está lindamente ilustrada pela sede do seu Ministério da Cultura - antigo palácio real nunca terminado e que há mais de 200 anos ostenta uma falsa parede, uma falsa fachada que remata o conjunto arquitectónico. No fundo, em termos políticos, tudo por aqui é fachada. E se ao longo da história, na maioria dos países, a arte é e sempre foi um exercício de burgueses, aqui pelo contrário, sempre foi o exercício de maltrapilhos, que tal como eu, com 40 anos e a ganhar mil euros por mês, ingenuamente acreditam que podem fazer alguma coisa pelo seu país.
Mas talvez seja esta plácida inocência, este mar gigante, que nos faz a todos sonhar, que torne Portugal e em especial Lisboa um doce e viciante purgatório que não conseguimos abandonar. O que me leva a pensar que seja a nossa indiferença, a nossa displicência congênita ou a nossa genética naif que tenha feito os Malkovich, as Madonna’s, os Michael Fassbender, as Monicas Belluci da vida terem escolhido este lugar pra habitar. Porque aqui, por mais acompanhados que estejamos, estaremos sempre sós.
Estamos próximos do 10 de Junho, dia Nacional e de Camões, e sempre que vejo agentes culturais a receber comendas, fico a sonhar com o dia em que alguém diga: Senhor presidente, Senhor primeiro ministro, tenho a maior estima pessoal por vós mas, em honra de todos aqueles que me precederam, quero que o Estado Português meta a comenda no cu!
Hoje somos apenas 10 milhões. Alguns estudos sobre natalidade alertam para que possamos desaparecer ainda este século. Eu, por mim, não acredito. Um povo-barata sobrevive sempre!